quarta-feira, 28 de junho de 2017

Tragédias

Passaram 10 dias sobre a tragédia acontecida no concelho de Pedrogão Grande e região circundante. O fogo, devastador, destruiu tudo quanto lhe apareceu pela frente, incluindo 64 seres humanos que estariam na hora errada, no local errado e para os quais não chegou o socorro atempado que se impunha.
Nesta altura, toda a gente faz balanços, comenta, opina, discute, aponta soluções e sugere culpados. Louva-se a abnegação, a solidariedade, o sacrifício, a dedicação de todos os que estiveram envolvidos na luta contra um inimigo que não dá tréguas, não dorme e nem sequer tem necessidade de qualquer paragem para recuperar. São os humanos contra a natureza, que com eles está zangada e mostra toda a sua violência, numa luta desigual da qual se conhecem antecipadamente os derrotados. 
E somos todos nós!
E não seremos também culpados? O nosso comportamento, o nosso alheamento, a nossa displicência, não agravarão as desgraças?
Agora que a solidariedade atingiu o seu pico com o grande espectáculo de ontem no MEO Arena, transmitido para todo o mundo português pelas 3 televisões, em directo e em simultâneo, e com a chuva que também resolveu associar-se à grande noite, está na hora de ajudar as pessoas que sobreviveram a refazer as suas vidas e de homenagear os mortos, procurando as causas que ditaram a sua partida e criando condições para que o futuro traga cada vez menos catástrofes análogas.
Tenho, para mim, que o trabalho dos profissionais da Protecção Civil (de bombeiros a técnicos, passando por legisladores e financeiros) é (deve ser) muito mais exigente a montante do que a jusante.
As "guerras" não se combatem, evitam-se. E é em paz que se distingue quem tem visão estratégica de quem "apenas" reage.

sexta-feira, 2 de junho de 2017

Livros lidos (ou em vias disso)

Está lá tudo!
É suposto que um romance contenha uma história, mais ou menos bem contada, que desperte o entusiasmo de quem lê e que, no final, deixe o leitor satisfeito com o que leu e, se possível, identificado com o(s) tema(s) abordados.
"O Pianista de hotel" não é uma história, são várias sempre interligadas, todas muito bem contadas, na linguagem simples que é tão difícil de usar quanto é bonita de ler: o médico que perdeu a filha que era para ser médica, quis aprender violino, foi depois promissora violoncelista, passou pela violência no namoro e acabou com um tiro, no Brasil; o bailarino de boite que foge da aldeia para que terminem as perseguições e acaba vítima da mesma homofobia na grande cidade; a jovem, linda, que fica sozinha no restaurante embora faça "parar o trânsito"; o advogado bem instalado e badalado que, afinal, está bem longe de ter atingido a felicidade; o enfermeiro que não conseguiu ser médico, criado pelo avô que resolvia os mais intrincados problemas mecânicos e andava de harmónica no bolso; a médica psicóloga que, um dia, cansada, foi caminhar para o rio ...
Violência, traumas, rejeições, fingimentos, máscaras, realidades, a vida e ... a música - da melódica à harmónica, do violoncelo ao piano - que atravessa todo o livro.
Grande regresso de Rodrigo Guedes de Carvalho!

"(...) Maria Luísa olhou para a paragem e viu um grupo de pessoas, afastadas umas das outras, a consultar o telemóvel, a ver as horas e a espreitar, a ver se o autocarro tarda muito, outra de braços cruzados só a olhar em frente, com um saco de plástico pendurado num dos pulsos, e ao lado da paragem estava uma vendedora de castanhas a fazer fumarada, e começando a chuviscar as pessoas juntaram-se mais na paragem, em busca de abrigo, e de dentro do carro o olhar de Maria Luísa subiu e ficou focado num candeeiro alto, onde a ferrugem já pintalgava o metal, e a luz alaranjada deixava ver como estava a cair a água, que vinha tímida, ligeiramente de viés devido ao vento, como um chuveiro sem força.
Luís Gustavo entrou no autocarro, que travou na paragem a chiar no alcatrão molhado. (...)

Rodrigo Guedes de Carvalho
O pianista de hotel
D. Quixote (Maio 2017)