terça-feira, 26 de dezembro de 2017

A música ... por quem sabe

A Fundação Calouste Gulbenkian está a publicar, no Youtube, vídeos sobre os instrumentos da sua Orquestra. 
Numa linguagem simples e de forma breve, estão a aparecer pequenas histórias ilustradas sobre, espero eu, cada um dos instrumentos que dela fazem parte. Até ao momento já estão 4 filmes sobre a trompa, a flauta, o clarinete e o fagote, sendo este último o que mais me fascinou - foi o primeiro que vi - e, por isso, aqui o deixo reproduzido.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

BOAS FESTAS

      Caldas da Rainha - Árvore de Natal 2017

FELIZ NATAL E UM EXCELENTE 2018

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Livros lidos (ou em vias disso)

Agora que o tempo é pouco para divagar, a leitura torna-se (ainda mais) ritual, obrigatória, diária. 
O terceiro livro da trilogia de Mia Couto sobre a saga de Gungunhana está quase a chegar ao fim e é mais um que traz a marca do grande escritor moçambicano: excelente:

(...) "Deve haver um sol dentro deste rio. Só assim se explica a luz de Lisboa. É o que digo ao capitão enquanto contemplamos as colinas da cidade. António de Sousa admite, sorrindo: a cidade deveria chamar-se <>.
É manhã do dia treze de março de mil oitocentos e noventa e seis. O navio progride, lento e vaidoso, pelo estuário do Tejo. À nossa volta há mais barcos que gaivotas. E são de todos os tamanhos e feitios: lanchas, canoas, fragatas, botes a motor, à vela e a remos, todos carregados de gente que acena num infinito alarido. Para os portugueses é uma festa. Para os prisioneiros é um prenúncio de fim do mundo.
Mais perto do cais percebemos como a multidão se estende e ondula ao jeito de um outro mar. Escutam-se os gritos:

      - Já chegou! Já chegou o Gungunhana! "(...)

Mia Couto
As areias do imperador - Livro três
O bebedor de horizontes

sábado, 11 de novembro de 2017

Livros (lidos ou em vias disso)

António Lobo Antunes de novo na guerra colonial, para mais um excelente livro que se lê, ou melhor, se esmiuça e digere com paciência, muito prazer e a certeza de que escrever tão bem e tão claro deve ser tão difícil ...

(...) - Calado  
      porque as ervas se agitaram perto do relevo onde a primeira perdiz ia surgir finalmente, voltando a cabeça para nós sem nos ver, nem sequer às orelhas da cadela que principiavam a inchar da mesma forma que a ponta de dois dentes ao léu enquanto o corpo da minha irmã vibrava, de boca a comer-se a si mesma consoante comia o suor do nariz e da testa, eu para a minha irmã e para a nespereira que se amparavam uma à outra, as duas com tantos braços, qual de vocês vai secar mais depressa, inclinar-se, cair, se ao menos relâmpagos no Mussuma incendiando o capim que a electricidade ajuda, se ao menos nesta horta uma liambazita que amansasse as cólicas, não conheço ninguém na vila excepto o empregado da oficina, chegamos lá e perguntamos a quem, diz-me, aos velhos de samarra que não falam sequer, a única resposta que dão, enquanto afiam um pau com a navalhinha, é chuparem o cuspo das mortalhas apagadas, numa rua próxima à capela a anunciar o domingo, ninguém se parece tanto com o outono como os sinos, quando morre uma pessoa, mesmo em junho, outubro sempre e a luz, logo de manhã, com saudades, e depois o homem que me leva às cavalitas não pára, não irá parar nunca para fugir à tropa, ao helicanhão, às gê três 
       - Mata mata
       a minha irmã para mim
       - Vamos a Lisboa por favor (...)

Até que as pedras se tornem mais leves que a água
António Lobo Antunes
D. Quixote (2017)

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Legionella

Afinal não há razão para alarme nem para preocupação!

Leitão Amaro garantiu ontem, na TV, que o Governo anterior tinha proibido a legionella, o que nos leva a pensar que a malfadada bactéria já deverá estar a ser procurada pela Polícia Judiciária e a ser alvo de inquérito do Ministério Público, com vista ao julgamento, justo, de que será alvo, como é próprio de um estado de direito. Sem haver dúvidas de que, face aos crimes cometidos, terá condenação exemplar, faltará apenas confirmar se a prisão será efectiva ou com pulseira electrónica.

A pérola poderá ser confirmada no endereço abaixo.

https://www.youtube.com/watch?v=4kn45brCFZg

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Palavras bonitas

CONTA E TEMPO

Deus pede estrita conta de meu tempo.
E eu vou, do meu tempo, dar-lhe conta.
Mas, como dar, sem tempo, tanta conta,
Eu, que gastei, sem conta, tanto tempo?

Para dar minha conta feita a tempo,
O tempo me foi dado, e não fiz conta.
Não quis, sobrando tempo, fazer conta.
Hoje, quero fazer conta, e não há tempo.

Oh, vós, que tendes tempo sem ter conta,
Não gasteis vosso tempo em passatempo.
Cuidai, enquanto é tempo, em fazer conta!

Pois, aqueles que, sem conta, gastam tempo,
Quando o tempo chegar, de prestar conta,
Chorarão, como eu, o não ter tempo ...

Frei António das Chagas
Escrito no séc. XVII

(Soneto publicado no caderno de Economia do semanário Expresso, de 21.10.2017, ilustrando, como é costume, o artigo de fundo de Nicolau Santos.)

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Língua Portuguesa

Primeira página do Público de hoje!

O revisor foi despedido ou já só sabe inglês?


Só beneficiam
de insenção no
IRS salários até

aos 669 euros

😜😜😜😜😞😞😞😞

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Felicidade

O meu neto Gil termina um trabalho da Escola com a seguinte pérola: 

"(...) Lembro-me muito bem, há seis anos, de ir ao hospital com a minha avó e ver o meu irmão muito pequenino deitado na cama do hospital ao lado da minha mãe. Foi um dos momentos mais felizes da minha vida."

A professora anotou: "Tão lindo, Gil!"

E o avô "babou-se" de orgulho por ter um neto tão GRANDE!

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Teatro

O Teatro Municipal Joaquim Benite, de Almada, vai levar à cena a História do Cerco de Lisboa, adaptando o romance homónimo que José Saramago escreveu em 1989. Conto lá ir, não logo na estreia - irá acontecer em 12 do próximo mês - mas, de acordo com a disponibilidade da agenda, talvez na semana seguinte.

Entretanto e porque já não (re)lia Saramago há uns tempos, fui à estante e, como sempre "gente fina é outra coisa": a forma de escrever, as voltas que o texto dá, os adágios, as opiniões, o humor, o "diz que disse", a descrição minuciosa, tudo evidencia o grande trabalho e o prazer de escrever, sendo certo que este não deve ser tão grande como o prazer de reler passados tantos anos.

E já agora, por falar em Teatro, o Teatro da Rainha estreia um novo trabalho a 5 de Outubro - Play House, de Martin Crimp. Lá estarei como de costume.

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Palavras bonitas

(Passam hoje 2 anos sobre a partida do meu pai.)

PERENIDADE
Nada no mundo se repete.
Nenhuma hora é igual à que passou.
Cada fruto que vem cria e promete
Uma doçura que ninguém provou.
Mas a vida deseja
Em cada recomeço o mesmo fim.
E a borboleta, mal desperta, adeja
Pelas ruas floridas do jardim.
Homem novo que vens, olha a beleza!
Olha a graça que o teu instinto pede.
Tira da natureza
O luxo eterno que ela te concede.

Libertação
Miguel Torga
Gráfica de Coimbra (1978)

terça-feira, 22 de agosto de 2017

Cidadania

Leio, no JL que me chegou há poucos dias, crónicas de Anabela Mota Ribeiro e de Kalaf Epalanga sobre o Festival Literário Internacional de Paraty. Em ambas é referida e exaltada a intervenção de uma Professora - Diva Guimarães - no espaço reservado ao público presente numa das mesas daquele Festival.

A forma como ambos adjectivam, nessas crónicas, a D. Diva, "obrigou-me" a ir "à pesca". Encontrei, sem grande esforço, um exemplo de coragem, de cidadania, de alerta, de chamamento, de força, contra as injustiças que já foram, as que se mantêm e as que irão continuar, se a grande maioria não se capacitar que o mundo é de todos e para todos, e não de "meia dúzia" de iluminados que traçam os caminhos para os outros e as grandes vias para eles próprios.

Uma intervenção que excedeu, em muito, as expectativas que me tinham sido criadas.

sábado, 12 de agosto de 2017

Livros lidos (ou em vias disso)

Numa altura em que, um anormal norte americano, de madeixas lacadas e dedinho apontado, qual boneco animado, e outro anormal, norte coreano, sem madeixas e de cabelo rapado, qual boneco articulado, disputam o primeiro lugar no campeonato da asneira e da fanfarronice, sabe bem ler:

"(...) A sua autoridade era de uma eficácia sem limites e, para quem visse, era ainda acentuada por, tantas vezes, o coronel ter flores no cabelo. Em certas ocasiões era ele que as punha atrás da orelha, mas noutras alturas eram as próprias flores que procuravam o cabelo do coronel. A flor e a autoridade, uma aparente contradição, acentuavam-se mutuamente e mostravam que a lei, o rigor e o poder devem ser acompanhados pela beleza estética e pela sensibilidade.
     O mordomo, por seu lado, não se mostrava consternado com a situação nem com o nervosismo de Kopecky e, ao sair da sala, ainda repetiu:
     - Que cheiro a chucrute!
     O coronel, mesmo reconhecendo a utilidade das armas, nunca as teria em casa como faziam os outros oficiais seus amigos, que tinham as paredes enfeitadas com pistolas e espingardas. Uma arma nunca poderá ser um objecto de decoração. As paredes são coisas que servem a nossa intimidade e impedem o frio, mantêm o calor, mas também são o esqueleto da cultura: é nas paredes que estão as estantes dos livros e os quadros pendurados. Wilhelm, o filho do coronel Moller, dizia mesmo que essa era a função principal de uma parede: servir a cultura. Para o frio há casacos. (...)

Afonso Cruz
O pintor debaixo do lava-loiças
Editorial Caminho

quinta-feira, 27 de julho de 2017

Transmissões

Transmissões de estabelecimento na Portugal Telecom, que implicam a agregação de trabalhadores a uma nova empresa, para continuarem a desempenhar as mesmas funções!
Tudo dentro da legislação em vigor e sem quaisquer hipóteses de recusa ou de aceitação prévia.
A lei é sempre feita para o bem de todos e desta, não há dúvida, alguns aproveitam muito ...
" E têm muita sorte porque, assim, continuam a ter o ordenado."
Estarei a sonhar ou já passei por isto?

quarta-feira, 28 de junho de 2017

Tragédias

Passaram 10 dias sobre a tragédia acontecida no concelho de Pedrogão Grande e região circundante. O fogo, devastador, destruiu tudo quanto lhe apareceu pela frente, incluindo 64 seres humanos que estariam na hora errada, no local errado e para os quais não chegou o socorro atempado que se impunha.
Nesta altura, toda a gente faz balanços, comenta, opina, discute, aponta soluções e sugere culpados. Louva-se a abnegação, a solidariedade, o sacrifício, a dedicação de todos os que estiveram envolvidos na luta contra um inimigo que não dá tréguas, não dorme e nem sequer tem necessidade de qualquer paragem para recuperar. São os humanos contra a natureza, que com eles está zangada e mostra toda a sua violência, numa luta desigual da qual se conhecem antecipadamente os derrotados. 
E somos todos nós!
E não seremos também culpados? O nosso comportamento, o nosso alheamento, a nossa displicência, não agravarão as desgraças?
Agora que a solidariedade atingiu o seu pico com o grande espectáculo de ontem no MEO Arena, transmitido para todo o mundo português pelas 3 televisões, em directo e em simultâneo, e com a chuva que também resolveu associar-se à grande noite, está na hora de ajudar as pessoas que sobreviveram a refazer as suas vidas e de homenagear os mortos, procurando as causas que ditaram a sua partida e criando condições para que o futuro traga cada vez menos catástrofes análogas.
Tenho, para mim, que o trabalho dos profissionais da Protecção Civil (de bombeiros a técnicos, passando por legisladores e financeiros) é (deve ser) muito mais exigente a montante do que a jusante.
As "guerras" não se combatem, evitam-se. E é em paz que se distingue quem tem visão estratégica de quem "apenas" reage.

sexta-feira, 2 de junho de 2017

Livros lidos (ou em vias disso)

Está lá tudo!
É suposto que um romance contenha uma história, mais ou menos bem contada, que desperte o entusiasmo de quem lê e que, no final, deixe o leitor satisfeito com o que leu e, se possível, identificado com o(s) tema(s) abordados.
"O Pianista de hotel" não é uma história, são várias sempre interligadas, todas muito bem contadas, na linguagem simples que é tão difícil de usar quanto é bonita de ler: o médico que perdeu a filha que era para ser médica, quis aprender violino, foi depois promissora violoncelista, passou pela violência no namoro e acabou com um tiro, no Brasil; o bailarino de boite que foge da aldeia para que terminem as perseguições e acaba vítima da mesma homofobia na grande cidade; a jovem, linda, que fica sozinha no restaurante embora faça "parar o trânsito"; o advogado bem instalado e badalado que, afinal, está bem longe de ter atingido a felicidade; o enfermeiro que não conseguiu ser médico, criado pelo avô que resolvia os mais intrincados problemas mecânicos e andava de harmónica no bolso; a médica psicóloga que, um dia, cansada, foi caminhar para o rio ...
Violência, traumas, rejeições, fingimentos, máscaras, realidades, a vida e ... a música - da melódica à harmónica, do violoncelo ao piano - que atravessa todo o livro.
Grande regresso de Rodrigo Guedes de Carvalho!

"(...) Maria Luísa olhou para a paragem e viu um grupo de pessoas, afastadas umas das outras, a consultar o telemóvel, a ver as horas e a espreitar, a ver se o autocarro tarda muito, outra de braços cruzados só a olhar em frente, com um saco de plástico pendurado num dos pulsos, e ao lado da paragem estava uma vendedora de castanhas a fazer fumarada, e começando a chuviscar as pessoas juntaram-se mais na paragem, em busca de abrigo, e de dentro do carro o olhar de Maria Luísa subiu e ficou focado num candeeiro alto, onde a ferrugem já pintalgava o metal, e a luz alaranjada deixava ver como estava a cair a água, que vinha tímida, ligeiramente de viés devido ao vento, como um chuveiro sem força.
Luís Gustavo entrou no autocarro, que travou na paragem a chiar no alcatrão molhado. (...)

Rodrigo Guedes de Carvalho
O pianista de hotel
D. Quixote (Maio 2017)

sábado, 27 de maio de 2017

Pérolas

Aguardava-se a chegada da mãe, que havia ficado "presa" no trânsito da "Aldeia Grande" e iria chegar bem mais tarde do que estava previsto.
Estávamos os dois na garagem, o avô às voltas com a instalação de uma nova tomada e o neto "segundo" a fazer remates contra a parede e a andar nos carrinhos que por ali fazem estacionamento.
Entretanto chega a mamã: a festa devida, o resumo do dia e ...

- Vasco, a avó tem lá em cima cromos do Pingo Doce.

Lesto, correu pela escada enquanto os adultos conversavam de tudo e de nada e iam subindo.
Ao fazermos a curva do primeiro patamar, ei-lo sentado no último degrau da escada, com um sorriso malandro de quem ia pregar uma bela partida.

- Dá um abracinho ao avô!

O gozo era evidente, copiando aquilo a que a coluna me obriga, quando não consigo pegar-lhe(s) ao colo.
Depois de dado o abracinho pedido, lá fomos para o escritório, ao encontro dos cromos dos animais. A satisfação a abrir era evidente e o sorriso cresceu de orelha a orelha quando encontrou a ratazana.

- Vou pô-la aqui para a avó ter medo.

E lá a colocou em cima do teclado do portátil da avó, tendo o cuidado de lhe fechar a tampa.

segunda-feira, 8 de maio de 2017

Palavras bonitas

A MULHER MAIS BONITA DO MUNDO

estás tão bonita hoje. quando digo que nasceram
flores novas na terra do jardim, quero dizer
que estás bonita.
entro na casa, entro no quarto, abro o armário, abro
uma gaveta, abro uma caixa onde está o teu fio
de ouro.
entre os dedos, seguro o teu fio de ouro, como
se tocasse a pele do teu pescoço.
há o céu, a casa, o quarto, e tu estás dentro de mim.
estás tão bonita hoje.
os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.
estás dentro de algo que está dentro de todas as
coisas, a minha voz nomeia-te para descrever
a beleza.
os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.
de encontro ao silêncio, dentro do mundo,
estás tão bonita é aquilo que quero dizer.

A casa, a escuridão
José Luís Peixoto
Temas & Debates (2002)

terça-feira, 25 de abril de 2017

25 de Abril

Apesar de comemorarmos o aniversário no mesmo dia eu (infelizmente) sou muito mais velho do que a LIBERDADE. Contudo, ainda espero continuar a soprar as velas em conjunto durante mais uns bons anos e desejo, muito, que os meus continuem a comemorá-la para além de mim, e que nunca a percam.
Hoje, a minha irmã, para além de me encher de livros que quer que eu leia até ao Natal para voltar a reforçar o "armazém" - como se eu não tivesse mais nada para fazer - e de festejar comigo, ainda resolveu dar publicidade, nesse jornal de grande tiragem e elevado nível que é o Facebook, de poemas que, como me conhece bem, sabe serem de alguns dos meus poetas favoritos. 
Aqui ficam, na voz inconfundível de Manuel Alegre, as palavras de 4 poetas de quem eu gosto muito.

domingo, 23 de abril de 2017

Livros lidos (ou em vias disso)

Aprendi há muitos anos uma anedota que conta(va) a polémica desenvolvida por dois amigos de infância os quais, após o percurso escolar conjunto desde a primária até ao liceu, se separam na universidade, indo um para veterinária e outro para medicina. Amigos continuaram mas passaram a polemizar sobre a utilidade, eficiência e dificuldade das duas especialidades. O médico veterinário argumentava sempre com a grande dificuldade de curar os animais sem poder ouvir qualquer queixa ou sintoma; muito mais difícil do que atender pessoas, dizia, que se queixam e dão todos os pormenores sobre as maleitas que as afectam, tornando facílimo o diagnóstico. O médico ripostava que a humanidade não existiria sem humanos ...
Um dia, (há sempre um dia, até nas anedotas) o veterinário adoeceu e foi à consulta do seu amigo.
- Estou aqui para me consultares, mas não te vou dar qualquer pista sobre aquilo que sinto. Tens de conseguir descobrir o que tenho.
- Despe-te e deita-te nessa marquesa.
Auscultação, apalpação, espreitadela aos ouvidos, ao nariz e à garganta, exame à córnea, martelinho nos joelhos, um exame completo e minucioso.
- Não tem remédio. Abate-se!

Estou a ler O Alienista e outros contos, de Machado de Assis, um dos maiores da língua portuguesa, que nasceu no Rio de Janeiro em 1839 e por lá se finou em 1908. No conto "Um apólogo", Machado de Assis põe a agulha e a linha a polemizarem sobre uma ser mais importante do que a outra, e termina assim:

(...) Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui e dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe:

- Ora, agora, diga-me quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.

Parece que a agulha não disse nada: mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha: - Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar a vida, enquanto tu aí ficas na caixinha da costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.
Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça: - Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária.
Machado de Assis
O Alienista e outros contos

sexta-feira, 24 de março de 2017

Reforma

E, finalmente, livre ... a "passagem à peluda", como se dizia nos meus tempos do serviço militar obrigatório, chegou.
Foi hoje encerrado um capítulo de meio século e estou cheio de garra para iniciar outro que dure, pelo menos, tanto tempo ...
Uma manhã quase tranquila, ainda que as emoções das despedidas aparecessem, por vezes, com aquele espírito traidor e infiel ao que se tinha combinado na noite mal dormida. Carinhos, muitos, uma caneta para não perder a vontade de escrever, um livro cheio de textos (imerecidos), que enchem o coração, a cabeça e tornam o ego enorme. (Têm esta opinião de mim? Enganam-se. Tenho tantos defeitos!). Foi óptimo e reconfortante! Se dependesse de mim decretava, de imediato, a felicidade para todos eles, sem distinção de género.
A conversa tida com o meu "eu" resultou: as lágrimas chegaram à porta muitas vezes, mas não passaram daí (meninas obedientes e bem comportadas).
Agora só preciso de tempo. 
Como diz Raduan Nassar, na Lavoura Arcaica que ando a ler, "o tempo é o maior tesouro que um homem pode dispor; embora inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento". Vou seguir o conselho e tentar fazer muitas refeições dele.
Obrigado a todos os que me acompanharam desde sempre. 
Vemo-nos por aí, com maior ou menor regularidade, mas seguramente com subido prazer.

terça-feira, 21 de março de 2017

Dia Mundial da Poesia

A poesia não vai                                                 

A poesia não vai à missa,
não obedece ao sino da paróquia,
prefere atiçar os seus cães
às pernas de deus e dos cobradores
de impostos.
Língua de fogo do não,
caminho estreito
e surdo da abdicação, a poesia          
é uma espécie de animal
no escuro recusando a mão                            
que o chama.                                                    
Animal solitário, às vezes
irónico, às vezes amável,
quase sempre paciente e sem piedade.
A poesia adora
andar descalça nas areias do verão.

Eugénio de Andrade
O sal da língua

Esteira e cesto

No entrançar de cestos ou de esteira
Há um saber que vive e não desterra
Como se o tecedor a si próprio se tecesse
E não entrançasse unicamente esteira e cesto
Mas seu humano casamento com a terra

Será possível

Será possível que nada se cumprisse?
Que o roseiral a brisa as folhas de hera
Fossem como palavras sem sentido
- Que nada seja, senão seu rosto ido
Sem regresso nem resposta - só perdido?

Sophia de Mello Breyer Andresen
O nome das coisas

domingo, 19 de março de 2017

terça-feira, 7 de março de 2017

Livros (lidos ou em vias disso)

Mais um excelente livro de Mário Cláudio, desta vez especulando sobre a vida de Camões e sobre um pretenso trapaceiro que pretenderia apoderar-se da obra do poeta.

"(...) Lá me surgia de tempos a tempos alguém que evocava os passos lisboetas do nosso homem, mas bem mais os chocarreiros do que os literários, com exclamações deste recorte, e proferidas entre torpes risadas e piscadelas de olho, "Que valdevinos!","Que borrachola!", "Que putanheiro!". E abstinha-me portanto de descrever o meu convívio com o vate, poupando-me à reposição de baboseiras quejandas, e preferindo não me capacitar da rapidez com que em Portugal se arquivam os maiores, a fim de os festejar muito depois nos ossos que deixaram, sempre que isso convém aos que mandam, e às vezes aos que obedecem.(...)"

E mais à frente:

"(...) Mas o que sobremaneira me deixava boquiaberto era que a gentalha que se cruzava com semelhante monstro, aceitando-o cegamente como Luís de Camões, nem por instantes adquirisse consciência de falcatrua tamanha. A população de Lisboa não reparava na fantochada, ou fingia não a compreender, arrebatada por essa forma de inércia lusa, e recorrente em vário tempo e lugar, nos termos da qual se mostra preferível a mentira que desresponsabiliza à verdade que sobressalta.(...)"

Os naufrágios de Camões
Mário Cláudio
D. Quixote (2016)

quinta-feira, 2 de março de 2017

Palavras bonitas ...

... para a minha mãe; todos os dias me parece que foi ontem e já lá vão 13 anos.

Depois da cinza morta destes dias, 
Quando o vazio branco destas noites
Se gastar, quando a névoa deste instante
Sem forma, sem imagem, sem caminhos, 
Se dissolver, cumprindo o seu tormento, 
A terra emergirá pura do mar
De lágrimas sem fim onde me invento.

Sophia de Melo Breyer Andresen
Coral

domingo, 5 de fevereiro de 2017

Palavras bonitas

Hoje, o meu neto caçula festeja o primeiro aniversário.

E que prazer e confiança ele nos transmite agora, quando já vai decorrido um ano da sua vida e começam a aparecer as brincadeiras e as tropelias.

O meu Miguel ainda não lerá este poema de outro Miguel, mas foi para ele que o avô o escolheu.

CONFIANÇA

O que é bonito neste mundo, e anima,
É ver que na vindima
De cada sonho
Fica a cepa a sonhar outra aventura ...
E que a doçura
Que se não prova
Se tranfigura
Numa doçura 
Muito mais pura
E muito mais nova ...

Cântico do Homem
Miguel Torga
Gráfica de Coimbra (1974)

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Acidente

À medida que os anos se vão sequenciando, as recordações que vêm à tona são as lá do fundo, dos primórdios, das primeiras gavetas da memória que, não sendo RAM, mantém frescos os ramos velhos e seca com rapidez os recentes.
No primeiro ano da Escola Nova (1964), o entusiasmo pela descoberta e a irreverência da idade faziam com que os intervalos entre as aulas fossem aproveitados para as traquinices que a velhinha escola das 5 bicas não permitia. Os campos de jogos eram fascinantes ... À sua volta foram colocados uns blocos de cimento que tinham um tubo em ferro galvanizado de cerca de um metro de altura. Quando havia jogos, os campos eram delimitados com esses blocos e era passada uma corda em nylon, pelos buracos dos tubos, criando assim uma vedação que impedia aos assistentes mais entusiastas a participação nas pelejas. 
Quando não havia jogos, os blocos eram tombados e ... um coloca-se na parte do cimento enquanto o outro, com o pé, levanta o tubo. O objectivo era saltar o tubo enquanto ele subia; numa das vezes, por distracção ou por maior rapidez do parceiro, o objectivo não foi alcançado, o salto ficou a meio e o tubo chegou ... às partes mais íntimas, que encimam as pernas. O corte aconteceu e o sangue brotou de imediato, criando algum alarme e empapando as calças. 
Ao tempo, os primeiros socorros estavam no ginásio e foi para lá que me dirigi, ajudado pelo companheiro da brincadeira. O senhor Policarpo ajudou-me a tirar as calças e examinou a ferida, confirmando, se necessário fosse, aquilo que as dores bem indiciavam e o sangue confirmava. Com uma paciência de santo, limpou, desinfectou, pôs tintura e uma gase bem segura por um desagradável adesivo que causava um desconforto tão grande como a ferida. Pelo meio, acalmou-me, contrapondo, a cada grito meu, que estava quase ...
Sempre que encontrava o senhor Policarpo, a "estória" vinha à baila, trazida ora por mim ora por ele.
Já não volto a falar com o contínuo da "minha" Escola nem com o clarinetista da Banda de A-dos-Francos, personagens reunidas numa pessoa que me marcou e de quem gostava, sentimento que, tenho a certeza, era recíproco. Partiu a semana passada, a 23 de Janeiro. Tinha mais 20 anos do que eu e faria 85 a 5 de Julho, se lá tivesse chegado.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Mário Soares e a poesia

Em 2005, o jornal Público editou uma colecção de livros de poesia, escolhida por diversas personalidades portuguesas e intitulada "Os poemas da minha vida". 
Um dos volumes - o 12º - contém a poesia escolhida por Maria Barroso e dele constam "Os dois sonetos de amor da hora triste", de Álvaro Feijó, que mereceram grande destaque nas cerimónias fúnebres de Mário Soares. A voz inconfundível e brilhante de Maria Barroso, deu vida a um dos momentos altos das cerimónias, num registo emocionante que quase parecia ter sido premonitório. (Maria Barroso faleceu em Julho de 2015).
Na altura da saída do livro não me detive nos sonetos de Álvaro Feijó, cuja obra não conhecia e que ainda desconheço. Contudo, a poesia na voz de quem sabe (sabia) desperta sentimentos, recordações, emociona e, como dizia Natália Correia para os subalimentados do sonho, "é para se comer".

sábado, 7 de janeiro de 2017

Mário Soares

Morreu hoje um dos maiores e talvez o mais resistente dos "cravos de Abril".
O ramo está cada vez mais pequeno ...

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Balanço 2016

Cumpridas as Festas, digeridas as comezainas, guardados os votos ouvidos e expressados, eis-nos chegados a 2017 com a esperança de que ele seja melhor do que o seu antecessor e traga tudo aquilo que as pessoas, por todo o mundo, incessantemente pediram.
O balanço far-se-á no final, como manda a tradição e, se tudo correr com normalidade, por mim já será feito fora da actividade profissional e, espero, como um reformado satisfeito.
Até lá, a guerra na Síria deve continuar e é provável que apareça noutros locais; a nossa atenção estará virada para os USA, sempre à espera das surpresas (ou não) do Trump; António Guterres dormirá pouco para conseguir levar a nau da ONU a bom porto; Angela Merkel poderá perder as eleições na Alemanha e Marine Le Pen ganhá-las em França; não deverá ser preciso esperar até ao final do ano para que o Banco Central Europeu autorize a administração da Caixa a tomar posse; o mar continuará a bater na rocha e a uma maré vaza seguir-se-á sempre uma maré cheia.
Entretanto e porque sou um lírico com esperança que algum dos meus netos, um dia, tenha a curiosidade de ver o que o avô leu em 2016, cumpra-se a tradição abrindo o registo informático, obtenham-se as capas e faça-se a necessária montagem: são mais de meia centena.