quarta-feira, 28 de maio de 2014

Quotidiano

Ainda não são oito da manhã. O comboio está parado na estação e aguarda que se esgotem os cerca de dois minutos assinalados no painel luminoso como tempo em falta para a partida.
É início de linha, as portas estão abertas e as pessoas vão chegando sem a correria que acontece nas estações intermédias.
Leio um livro, como quase sempre. Duas ou três páginas libertam e tranquilizam. Ao lado, o ruído de uma conversa entre duas senhoras, uma quase a roçar a minha geração, a outra ainda jovem e bem jovial. São colegas de trabalho, percebo, e falam de uma terceira, temporária, que foi dispensada e teve de regressar a casa dos pais, acompanhada do marido e do filho. Nestes tempos, o tema é um não assunto, tão vulgar se tornou.
Pelo canto do olho, apercebo-me que o homem tropeça ao entrar no Metro. A pasta mantém-se segura numa das mãos, mas o telemóvel "voou". A mensagem não chegou ao fim e o aparelho despenhou-se naquele desfiladeiro que fica entre o cais e o comboio. Grande pontaria!
A atrapalhação era evidente e as faces ruboresceram. Que fazer?
De súbito, ouve-se a voz, colocada, da mulher mais velha:
- Vá lá acima e diga ao meu colega o que lhe aconteceu.
- ???
- Vá depressa, para ele ter tempo de, enquanto não chegar o próximo comboio, desligar a corrente, descer à linha e apanhar o telemóvel. Não tenha medo: o comboio não lhe toca. Despache-se!
Nem agradeceu. Correu para as escadas e, com a velocidade de quem faz os 100 metros da sua vida, partiu em busca do auxílio. A velocidade que imprimiu deve ter feito o coração quase saltar do peito.
A funcionária do Metro esclareceu os passageiros:
- O telemóvel está lá em baixo, mas o comboio não o pisa.
Os dois minutos tinham passado e o Metro partiu.
E o telemóvel, teria ficado inteiro, como a senhora assegurou?

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Salazar

Na minha juventude, ouvi inúmeras anedotas sobre Salazar, Tomás, Caetano, Tenreiro, Cerejeira e outras figuras gradas do regime que nos ridicularizava, as quais, muito à socapa, alguns iam fazendo correr de boca em boca, como a "vingança" possível.
Dos fatos sem bolsos do Salazar, que não precisaria deles por passar a vida a meter as mãos no bolso de todos, ao Tomás a mandar procurar envelopes redondos para enviar as circulares, havia para todos os gostos.
Porém, nunca tinha ouvido a que J. Rentes de Carvalho transcreve no seu livro A Flor e a Foice, cuja leitura está quase concluída. 
Não resisto a deixá-la por aqui, com a devida vénia à inteligência, sagacidade e malícia do anónimo autor.
"Uma noite jantava Salazar em casa do general Carmona, então presidente da República, e à mesa reinava um silêncio profundo. 
Um dos netos do general, ainda criança, voltando-se para Salazar quis saber:
- Senhor presidente, o que é o Governo?
Não tendo recebido resposta, na sua inocência, fez mais uma pergunta:
- E o que é a ditadura?
Salazar retorquiu irritado:
- O menino faça como o avozinho, coma e cale-se."

domingo, 11 de maio de 2014

Memoráveis

UM DIA

Um dia, os rapazes serão louvados.
Hão-de passar entre multidões floridas.
Levarão riso na boca e os braços levantados.

Um dia, os rapazes hão-de ser punidos.
Pelos males que hão-de vir dos quatro pontos cardeais.
Terão latrinas derramadas nos portais.

Um dia esses heróis serão esquecidos.
Os seus nomes alinhados entre conchas e espinhas.
Hão-de constar de uns livros nunca lidos.

Mas um dia, este dia, será o dia do idílio.
Os rapazes ainda não desistiram de soltar os braços dos escravos.
E os escravos ainda não renegaram a cor dos cravos.
Ainda estamos no princípio desse dia.

Francisco Pontais - Poeta

Lídia Jorge
Os Memoráveis

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Palavras bonitas ... para a minha mãe

LUGAR DO SOL

Há um lugar na mesa onde a luz
abdicou do seu ofício.
Já foi do sol
e do trigo esse lugar - agora
por mais que escutes, não voltarás
a ouvir a voz de quem,
há muitos anos, era a delicadeza
da terra a falar: "Não sujes
a toalha"; "Não comes a maçã?"
Também já não há quem se debruce
na janela para sentir
o corpo atravessado pela manhã.
Talvez só um ou outro verso
consiga juntar no seu ritmo
luz, voz, maçã.

Eugénio de Andrade
Ofício de Paciência

A minha mãe faria hoje 91 anos, mas "a luz abdicou do seu ofício".