quarta-feira, 27 de março de 2024

Dia Mundial do Teatro

"(...) PRIMEIRA COMADRE: Não ouve, comadre? O mafarrico quer continuar a fazer de cego!

FALSO CEGO: Não, senhora. Fui cego até agora, mais nada. Isto (sacode a venda) é a prova! Fui cego. Fui! Mas hoje a boa hora soou para o povo. Pelas frestas deste trapo conheci o padre Cano. Presenciei o medo que vai na tropa, e, nesses montes além, vi o Ruivo e mais três sargentos a entregarem-se ao bando do Académico. Andando por toda a parte, tudo soube, tudo ouvi. De Coimbra vêm estudantes, Vila Real já se rende, fogo para aqui fogo para ali, bala vai, bala vem, e - poder do mundo - as vilas levantam-se pela Maria da Fonte.

SEGUNDA COMADRE, PARA A OUTRA: E ele, cego.

PRIMEIRA COMADRE: Pudera. O mundo está para os cegos.

FALSO CEGO: Nem mais. Se não tivesse feito o que fiz nunca teria as vantagens que tive.

SEGUNDA COMADRE: Que vantagens?

PRIMEIRA COMADRE: Sim, que vantagens?

FALSO CEGO: As vantagens de ser cego.

(Pega na viola e canta)

AS VANTAGENS DE SER CEGO 

Perguntaram ao cego
se ele não ia às eleições
nem dava contribuições
e mais impostos devidos.
"Assina, escolhe os mandões
que há muito estão escolhidos."

COMADRE: E o cego que respondeu?

FALSO CEGO: 
"Senhor, respondeu o cego,
"Eu sou cego, cego, cego,
E o meu rosto jamais vi.
Desconheço a minha letra
E de quantos nos governam." (...)

José Cardoso Pires
O render dos heróis
Dom Quixote (2001)

terça-feira, 26 de março de 2024

Saltimbancos

Em vésperas de Abril, o dia começou com muita chuva, vento e granizo, coisa que não é muito habitual por este oeste sossegado. As pedrinhas estragaram algumas flores da laranjeira, dos limoeiros e da ginjeira, e alteraram o verde da relva para um esbranquiçado parecido com a minha cabeleira.

Tudo indicava que seria um de

"vai prá barraca, Mimoso!"

sem qualquer interesse, a não ser aquele a que o livro actualmente a ser lido, proporciona.

Afinal, tudo se alterou. Para quem, como eu, gosta de teatro, o espectáculo surgiu no televisor, sem necessidade de comprar bilhete, em directo da Assembleia da República. A "peça" transmitida está a baixar de nível e a subir de interesse. Trata-se da eleição do novo Presidente da AR, segunda figura da hierarquia do Estado. 

Confesso as minhas limitações: ainda não percebi se é comédia, drama ou farsa, e se o elenco - 230 "actores" - tem nível para o papel que lhes destinaram. Contudo, já entendi que a minha geração, que depositou enormes esperanças na chegada da liberdade, não foi capaz de transmitir valores a muita da gentalha que hoje se senta em cadeiras cuja ocupação deveria ser por pessoas de nível, preocupadas com as funções para que são (foram) eleitos.

sábado, 23 de março de 2024

Poeiras

A poeira, parece que africana, suja os carros, a roupa estendida e até a relva do quintal. Torna o azul do céu meio acinzentado e cria alguma dificuldade na respiração ... dos velhos, principalmente daqueles que fumaram desalmadamente, em tempos idos.

Já lá vão muitos anos, mas o tabaquito alugou uns quartos nos alvéolos e por lá se vai mantendo, quase sempre sossegado, sem pagar alojamento e dando um ar da sua graça de quando em vez. Um médico amigo bem me avisou e em tempo útil:

Olha que alvéolo fechado nunca mais reabre ...

O aviso deve ter entrado a 100 no ouvido esquerdo e saído a 200 pelo direito. Era fixe, como agora se diz. Dava um certo charme, ocupava as mãos e permitia ganhar tempo em situações críticas, propiciando pensar melhor antes de sair asneira.

Deixou marcas, que acordam de vez em quando, lembrando que as asneiras se pagam sempre e, muitas vezes, os custos são enormes e nunca cobrem os pretensos benefícios.

Mas a que propósito me lembrei eu disto, agora?

Ah! Já sei! 

Os fumos do 10 de Março passado vão ter consequências no futuro, mais cedo do que tarde, digo eu que conheço bem os malefícios do tabaco. Assim não fechem todos os alvéolos ...

quinta-feira, 21 de março de 2024

Palavras bonitas

No Dia Mundial da Poesia, palavras tão antigas e tão actuais.

GUERRA

Quando Francisco Charrua
chegou ao largo gritando:
- Eh! gente, estalou a guerra!
Zé Gaio de alvoroçado
pôs-se a bater o fandango.

Os outros só pelos olhos
falavam surpresa, esperança:
- Será agora? Talvez ...!
Mas Zé Gaio tinha a certeza:
estava a bater o fandango! ...

Já vão dois anos passados.
Agora a telefonia
da venda, à esquina do largo, 
informa todas as noites:
"Uma esquadrilha inimiga
bombardeou a cidade:
morreram trinta mulheres
e vinte e sete crianças."
Agora a telefonia
informa todas as noites, 
dias, meses, anos ... noites:
"Morreram trinta mulheres
e vinte e sete crianças."

... E lá num canto do largo,
coberto de noite e raiva,
Zé Gaio abriu a navalha.
Zé Gaio espetou a navalha
no grosso tronco da faia.

Lá num canto do largo,
a faia toda dobrada
- será do peso da noite
ou do vento da desgraça
que sai da telefonia?

Manuel da Fonseca
Poemas completos
Forja (1958)

quarta-feira, 20 de março de 2024

Primavera

Embora cada vez mais pareça que, em Portugal e no resto do mundo, o Inverno é a estação do ano prevalecente, com nuvens por todo o lado, tempestades em muitos sítios, ciclones em várias regiões, o calendário continua a registar que hoje é o primeiro dia de Primavera do ano de 2024. 

Ofuscada pelos muitos tiroteios que continuam a ceifar vidas inocentes, deixando os culpados gozarem de um Verão que lhes continua reservado em exclusivo,  a "Prima", ainda assim, mantém viva a esperança de que, um dia, talvez se consiga uma sociedade mais justa, mais serena e, sobretudo, mais pacífica.

terça-feira, 19 de março de 2024

Dia do Pai

Ainda que as comemorações deste tipo não sejam o meu forte, hoje é, efectivamente, o Dia do meu Pai. Completaria 102 anos dum "saber da experiência feito", consolidado à custa de muito trabalho, desde a meninice.

segunda-feira, 18 de março de 2024

Incómodos

Faltam quinze minutos para a hora prevista. A sala, antiga mas sempre bonita, está bem composta, apesar de ser meio da tarde de Domingo. Na fila reservada, apenas estão sentadas duas "jovens", nos dois primeiros lugares da coxia. Devem ter vindo "de véspera", que a idade acentua a pressa e o receio de chegar atrasado. Nenhuma é "A senhora de Dubuque", que só aparecerá daí a pouco, em cima do palco.

Pede-se licença, antecedida das desculpas devidas pelo incómodo. Recebe-se, em troca, um ar enfatuado, acompanhado pelos raios de dois olhares faíscantes, como quem diz:

- Olha que chatos. Não podiam ter vindo mais cedo?

Não se levantam. Rodam um pouco as pernas, devagar, dando mostras do desagrado que a situação lhes causa. Nas mãos de ambas está o utensílio indispensável para qualquer pessoa de "bom gosto" e com necessidade premente de não perder pitada do que vai acontecendo no mundo. Já sentado, reparo melhor: afinal não são mensagens, notícias ou redes sociais; as cartas evoluem no ecrã e o jogo desenrola-se com bastante rapidez. Os dedos são ágeis e denotam bastante prática.

A instalação sonora do teatro anuncia que o espectáculo vai começar, que é proibido gravar ou fotografar e que os telemóveis deverão ser desligados. O jogo prossegue e termina com uma vitória, premiada com foguetes no visor.

- Consegui! Mas foi difícil ...

A interlocutora não faz comentários. Talvez o tempo não lhe tenha permitido chegar ao fim e o seu mau humor volta a mostrar-se.

As luzes apagam e os aparelhos são guardados na mala já com tudo escuro.

A peça, felizmente, não foi incomodada e valeu bem a deslocação.

sábado, 16 de março de 2024

Não esquecer

Passam hoje 50 anos em que uma manhã surpreendente para muitos e atribulada para alguns deu lugar a uma declaração oficial do regime, emitida já no final do dia: "Reina a ordem em todo o país".

Foi o levantamento do "meu" Regimento de Infantaria 5, que levou muita gente conhecida à "grelha" e apressou a "madrugada que eu esperava". Esta, levada a cabo pelos militares sem medo e imortalizada pela pena de Sophia de Mello Breyner Andresen, viria a surgir, esplendorosa, exactamente 40 dias depois, no dia dos meus 22 aninhos. 

quinta-feira, 14 de março de 2024

Livros (lidos ou em vias disso)

Surpresa!

Ao fim de tantos anos, descobri que, afinal, o apodo de Águas Mornas para os habitantes das Caldas da Rainha não é exclusivo. Há mais gente, pelo menos em Trás-os-Montes, que também é assim "catalogada".

Se dúvidas houvera, basta ler!

"(...) Este apaziguamento geral saltava tanto aos olhos que Soutelinho não podia escapar sem um apodo que o consagrasse. Como se sabe, raras são as povoações desta província nortenha sobre as quais não pese o fardo dum apodo. O apodo é uma alcunha que normalmente castiga um pecadilho, aleijão ou costume próprio das gentes do lugar. Mas enquanto a alcunha é individual, o apodo é colectivo. Há apodos e apodos. Algumas vezes nada têm de depreciativo, e são pacificamente aceites. Outras vezes, porém, os apodos são irritantes, porque nascem de um qualquer vício ou aleijão de que os habitantes padeçam e de que não gostem de ser lembrados.

Não é irritante o apodo das gentes de Soutelinho, que é Águas Mornas - e não sei que outra forma assentaria melhor aos seus modos cordatos do que Águas Mornas. Águas mornas estão longe do ponto de ebulição e por isso não escaldam ninguém, e não dão portanto azo a confrontos, litígios, guerras. Quando, noutra aldeia qualquer das redondezas, alguém quer intimidar alguém, diz-lhe com arreganho:

- Olha que eu não sou nenhum Águas Mornas, ouviste? (...)"

A.M.Pires Cabral
Um cão chamado Pardal

terça-feira, 12 de março de 2024

Resultados

Eis que surgem os resultados das legislativas antecipadas, em consequência de um processo que há quatro meses continua a marinar no forno do segredo ... da justiça. Todos os prognósticos falharam, apesar de serem feitos por gente que sabe da poda e que, afinal, se engana como todos os mortais, ainda que, quando "prega", raramente exprima dúvidas.

O "jogo" ainda está no período de compensação. No entanto, toda a gente acha que o resultado final não sofrerá qualquer alteração, apesar de os votos dos emigrantes só chegarem lá para o dia 20. A AD venceu, o PS ficou pertinho e o outro  chegou ao 3º. lugar, com mais de um milhão de apaniguados.

Parece estar um caldinho armado, de digestão difícil e futuro incerto. Em Belém, devem fazer-se preces fervorosas para que tudo se resolva e haja Governo para ... 6 meses. Já não será mau, cumprir-se-á a Constituição e, findo esse tempo, podemos ir de novo colocar a cruz, aproveitando-se a ocasião para imprimir um boletim de voto onde todos os partidos concorrentes exibam a mesma configuração, sem a amálgama deste, com maiúsculas para uns, minúsculas para outros, sem que se perceba a razão de tal diferença.

E se, porventura, surge outro milhão? A ver vamos ...