sexta-feira, 25 de julho de 2014

Memórias

“podia ser só uma Avó... mas ela era (é) o cheiro do sabão azul e branco, a água que escorria dos tanques públicos para a calha, os carreiros de formigas, os lagartos saídos da seringa de madeira para a mesa, o cheiro das couves cozidas misturadas com as sêmeas, as flores violeta rebentadas se lhes tapássemos os topos, o andar em bicos de pés para chegar aos ovos, o som do motor do poço, as molas encaixadas como comboios no terraço, a cafeteira deformada usada como regador, os pegamassos, o açafate com uma bola de madeira e mil botões, o pente molhado no lavatório antes de alisar o cabelo, os bifes fritos em lume lento, as mãos calejadas, o cheiro das cascas das sementes dos pássaros sopradas para fora dos comedouros, as urtigas arrancadas à mão... podia ser só uma Avó e já era muito, mas foi (é) grande parte das memórias impregnadas na matriz quase por estrear que era o meu cérebro infantil e, por isso, mais marcantes e intensas... e a prova de que não é o dinheiro, nem a instrução, nem a quantidade de brinquedos, que garantem uma infância feliz. os afectos (ou a falta deles) é que condicionam tudo o resto daí para a frente...”

A minha filha vai perdoar-me a apropriação e divulgação do texto que escreveu e publicou no seu blogue, partindo do filme que André Raposo realizou, tendo por base uma crónica de José Saramago.
O retrato é perfeito, as palavras certas, a descrição genial.
Nos arquivos da minha memória está cada vez mais presente, com mais pormenor, a personalidade, a calma, o carinho, os ensinamentos que cada vez valorizo mais.
O tempo é outro e mais urgente. 
Os meus netos nunca dirão de mim nada parecido com o que a minha filha hoje me ofereceu sobre a minha mãe.
E as lágrimas não param ...

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Sophia - Poesia e Sabedoria

No dia em que passam dez anos da sua partida, os restos mortais da ENORME poeta Sophia de Mello Breyner Andresen foram trasladados para o Panteão Nacional.
Os seus versos serão eternos, permanecerão connosco para sempre e, espera-se e deseja-se, estarão cada vez mais em todas as nossas escolas, como muito bem pediram os seus filhos.

MAR SONORO

Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim,
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho,
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim.

AS ROSAS

Quando à noite desfolho e trinco as rosas
É como se prendesse entre os meus dentes
Todo o luar das noites transparentes,
Todo o fulgor das tardes luminosas,
O vento bailador das Primaveras,
A doçura amarga dos poentes,
E a exaltação de todas as esperas.

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É por ti que se enfeita e se consome,
Desgrenhada e florida, a Primavera.
É por ti que a noite chama e espera.

És tu quem anuncia o poente das estradas.
E o vento torcendo as árvores desfolhadas
Canta e grita que tu vais chegar.
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LUA

Entre a terra e os astros, flor intensa,
Nascida do silêncio, a lua cheia
Dá vertigens ao mar e azula a areia,
E a terra segue-a em êxtases suspensa.

PORQUE

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não. 

POEMA

Cantaremos o desencontro:
O limiar e o linear perdidos

Cantaremos o desencontro:
A vida errada num país errado
Novos ratos mostram a avidez antiga.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Obra Poética