quinta-feira, 30 de novembro de 2006

Palavras bonitas

HOSSANA !
Junquem de flores o chão do velho mundo:
Vem o futuro aí!
Desejado por todos os poetas
E profetas
Da vida,
Deixou a sua ermida
E meteu-se a caminho.
Ninguém o viu ainda, mas é belo.
É o futuro ...
Ponham pois rosmaninho
Em cada rua,
Em cada porta,
Em cada muro,
E tenham confiança nos milagres
Desse Messias que renova o tempo.
O passado passou.
O presente agoniza.
Cubram de flores a única verdade
Que se eterniza!

Cântico do Homem
Miguel Torga
Gráfica de Coimbra (1974)

terça-feira, 28 de novembro de 2006

Fim do dia

O ritual do costume, na chegada a casa: abrir o portão, à terceira ou à quarta tentativa, que o automatismo só funciona quando quer; pôr o carro debaixo do alpendre, que a arrumação na garagem fica para mais tarde; ir ver o correio; tirar o casaco, a gravata e os sapatos.
Hoje, entre muito lixo de publicidade e duas ou três cartas sem qualquer interesse, vem o JL.
Já sem o plástico que o protege, acompanha-me ao sítio onde, sentado, "todo o cobarde faz força e todo o valente se c171".
Na última página, como sempre, uma autobiografia, desta vez de Teresa Lago, cientista que fez uma "perninha" importante no Porto Capital da Cultura. No seu texto, encontra-se esta pérola, a propósito dos tempos que passou em Brighton, fazendo o mestrado e o doutoramento, o que deve ter acontecido há cerca de 30/35 anos:
... um tempo excitante, entre a aprendizagem da investigação e a família entretanto alargada a três. Mas também um tempo de outras descobertas. E a oportunidade para viver em ambiente onde se descobre, com surpresa, que a natureza é soberana. Talvez mais ainda do que a rainha que os representa. Onde as árvores se não cortam mas se tratam, se doentes. E aos pássaros, se permitia a partilha calma das migalhas sobre as mesas. Onde as casas antigas, preservadas em vez de derrubadas, transmitiam a serenidade da continuidade e a partilha de muitas vidas. Num país onde se cultivava andar a pé, chovesse ou fizesse sol. Talvez porque a milha é bem maior que o quilómetro. Onde o verde dominava, apenas quebrado pelo amarelo dos jacintos que irrompiam aos milhares passado o gelo, ou pelos dourados vermelhos das folhas de numerosas árvores que se descobriam, distraídas da proximidade do frio. Um país onde a curiosidade infantil era virtude a estimular, não sinal de irrequietude. ...
Será um dia possível escrever algo parecido sobre o nosso cantinho à beira mar plantado?

quarta-feira, 22 de novembro de 2006

Nostalgia ?!

Acabei de ler "As pequenas memórias", último livro de José Saramago.
Uma pequena viagem ao Portugal dos anos trinta, que não conheci, com alguns pormenores interessantes e elucidativos, de situações e vivências que se mantiveram, infelizmente, por muitos anos.
O país do Botas, pobrete mas alegrete, na casa portuguesa, com certeza: "quatro paredes caiadas, um cheirinho a alecrim, um cacho de uvas doiradas, duas rosas, um jardim. Um S. José de azulejo ... "
Bolas !!!
Não me falem do passado, que me dá a brotoeja!
O futuro está aí, para ser vivido.

domingo, 19 de novembro de 2006

Jardim da ... Ginja

Num dia em que o céu oscila entre o azul e o cinzento, e a azia da noite de ontem ainda se faz sentir, nada melhor do que uma voltinha pelo jardim da casa.
Para além da apanha de uma boa quantidade de chuchus, que hão-de ser transformados em doce e em excelente acompanhamento de vários pratos, graças às mãos hábeis da dona da casa, a recolha de meia dúzia de pormenores de algumas das flores que connosco convivem.

Palavras bonitas

A ARTE DOS VERSOS

Toda a ciência está aqui,
na maneira como esta mulher
dos arredores de Cantão,
ou dos campos de Alpedrinha,
rega quatro ou cinco leiras
de couves: mão certeira
com a água,
intimidade com a terra,
empenho do coração.
Assim se faz o poema.

Poesia
Eugénio de Andrade
Fundação Eugénio de Andrade (2000)

terça-feira, 14 de novembro de 2006

Rosas




Uma rosa fica bem em qualquer situação! Aprendi isto, há cerca de quarenta anos, com um Mimoso, quase analfabeto, que falava com as plantas, carinhosamente tratadas, como se fossem gente.E devia ser entendido! As rosas Bacará daquele jardim ainda permanecem na minha memória e eram muito mais bonitas do que estas !!!

segunda-feira, 13 de novembro de 2006

O Maestro da Orquestra

Para que não haja quaisquer dúvidas e apesar de o ter referido no início, o texto foi escrito por mim.
As fotografias dos animais da pretensa fábula não são, nem poderiam ser, da minha autoria. "Roubei-as" na Net e agradeço a todos os que permitiram este "roubo". Possibilitaram rever alguns pássaros da minha infância, que já não enxergava há muitos anos.
Nunca poderei devolver a gentileza da Net: sou um desastre a fotografar.

sábado, 11 de novembro de 2006

A Orquestra (Conclusão)

Desiludido e triste, o grilo voltou à meditação e, de tão distraído que ia, por pouco não era picado pelo pardal que procurava fazer a sua primeira refeição, retardada pela chuva impiedosa que só agora tinha terminado.
- Bolas, nem já os amigos se respeitam!
- Desculpa, meu bom grilo, vinhas tão encolhido que parecias mais um feijão preto do que um elegante grilo. Vens preocupado!?
O grilo contou a sua desdita com a cigarra e logo ali recebeu o apoio do pardal, apesar das limitações deste em relação à música.
As dificuldades de comunicação existentes à época fizeram com que decorresse algum tempo até ser possível juntar todos. Aconteceu, numa linda manhã de sol, por debaixo de um jacarandá majestoso e florido, um debate rico e emotivo sobre as propostas do grilo falante. Com o cepticismo de uns e o optimismo de muitos, ali se delineou um programa de aprendizagem em conjunto, se esquematizaram os ensaios e se concluiu que talvez fosse possível, todos juntos, produzirem um som harmonioso, que tornasse a floresta ainda mais bela para os de lá e atractiva para quem os visitasse.
Sob a batuta de um grilo discreto e eficiente, o cartaxo toca trompete, o rouxinol clarinete, o pintassilgo violino, a fuinha dedilha o violoncelo sempre carregado pelo gaio, a perdiz toca um adufe e a galinhola um pandeiro, a narceja anuncia os espectáculos e o chapim aplica-se na percussão.
Para todos há lugar e função. O pardal, sempre atento, trabalha para que nada falte, das partituras às estantes, das cordas às palhetas, das cadeiras aos transportes.
A cigarra continua a cantar sozinha ... mas quase ninguém a ouve.

Nota - Qualquer semelhança entre esta pretensa fábula e a vida real é mera coincidência.

sexta-feira, 10 de novembro de 2006

A Orquestra (Parte 3)

Na floresta vivia também o grilo que, não sendo ave, tinha uma queda especial para a música. E como ele gostava de ouvir os outros, muito mais até que a si próprio, aqueles que já se mencionaram e os tentilhões, os verdilhões, os piscos, os pintarrôxos, as perdizes e as galinholas, os guarda-rios e as fuinhas, a cotovia e a carriça e tantos, tantos mais ... O grilo passava toda a sua vida à procura de um bom buraco para as suas meditações e isso permitia-lhe aperceber-se da beleza individual de cada som, e também do desagradável ruído de todos a cantar ao mesmo tempo, sem nexo nem harmonia.
Até magoava os tímpanos que, num corpinho tão frágil, não eram lá grande coisa. Num dia em que a chuva, forte, não permitia a saída do buraco, tirava a alegria aos cantores, e tornava a floresta fria, tristonha e melancólica, fez-se luz na pequena cabeça do grilo, que saltou de alegria e só não disse Eureka! porque esta palavra só se celebrizaria muito mais tarde quando Arquimedes a pronunciou.
- É isso mesmo! Vamos fazer uma orquestra!
Esquecendo a chuva, o grilo falante saltou do buraco e foi à procura da cigarra. Era tida como uma grande cantora, senhora duma linda voz, por certo aceitaria colaborar no projecto.
- Mas porquê, grilo falante, para que queres tu uma orquestra!?
- Para juntar o melhor de cada um e fazer um som melhor para todos, respondeu, de pronto, o nosso grilo.
- Não estou interessada! Quero fazer a minha carreira a solo! Além disso, dos outros ninguém canta como eu ... só desafinam e ... agora deixa-me fechar a porta que este frio pode fazer mal à minha garganta e impedir-me de cantar no Verão.
(Continua)

quinta-feira, 9 de novembro de 2006

A Orquestra (Parte 2)

Junto ao rio, a narceja partia para mais uma expedição, assinalando essa partida com um silvo conhecido de todos os habitantes da floresta mas que sempre assustava o cisne, concentrado nos seus bailados aquáticos e em algum peixinho distraído que aparecesse ao alcance do seu mergulhador bico.

A toutinegra e a felosa colocavam o seu canto em contraste com o grito lancinante do gaio, cujo azul das penas se confundia com o celeste, mas não era tão belo como o da sua prima pega, de quem invejava a beleza e a facilidade com que sempre conseguia os lugares mais difíceis e mais belos dos pinheiros mais altos.

O chapim, pequenino e sem grande músculo, procurava os pequenos arbustos, de quando em vez uma aventurazita numa figueira já de algum porte, em busca de um fruto mais maduro, mas o que ele adorava mesmo era baloiçar no canavial, ao sabor do vento, esforçando-se por cantar bonito, com a certeza de que poucos o ouviriam e, se calhar, nenhum lhe prestava atenção. Um dez réis de gente! Por vezes, quase caía à água, quando um pato real por ali passava, em velocidade supersónica, semelhante à dos aviões que ainda estavam por inventar, e sem respeito nenhum por quem ali estava em reflexão e a dar curso à sua veia artística. O cartaxo fazia-lhe companhia, de quando em vez. E era ouvi-los, à compita, a tentar extrair da garganta um som cada vez mais belo.

(Continua)

quarta-feira, 8 de novembro de 2006

A Orquestra (Parte 1)

Texto publicado no Jornal das Caldas em Maio de 2000, que hoje fui buscar ao baú das memórias. A sua extensão aconselha a divisão em dois ou três posts, para que a leitura seja mais fácil e aguce o interesse, se ele existir.

Aconteceu num passado tão longínquo que dele não há memória em registo de livro, acta ou arquivo, muito menos em cinema, vídeo ou fita gravável.
Era no tempo em que ainda se não falava no "achamento", na semeadura do pinhal de Leiria ou na cena de D. Afonso com a mãe, o convento de Mafra ainda não sonhava ser tema de romance com direito a Nobel, a Rainha ainda não tinha visto os doentes a banharem-se e as árvores ainda eram de madeira.
Poder-se-ia afirmar, sem receio de desmentido, que os animais por essa altura ainda falavam, que os homens, se existiam, não davam nas vistas nem faziam asneiras e que o acontecido chegou aos nossos dias à custa do testemunho passado na estafeta da vida.

A floresta vivia um dia normal, igual a todos os que já tinham acabado e cumprido a sua função de dar lugar à noite, mais uma, silenciosa e melancólica, como são todas as noites da floresta.
Em cada árvore, os habitantes exibiam os seus dotes canoros, numa melopeia de sons variados. Numa delas, o rouxinol, desesperado, não entende a razão pela qual o melro, com o seu assobio estridente, lhe estraga sistematicamente a sinfonia, dispersando-o e obrigando-o a começar tudo de novo. Numa outra, um plátano secular em período outonal, dois pintassilgos vistosos, de gravata vermelha ao pescoço, alternam bicadas nas bolas castanhas com gorjeios tão estridentes que fazem corar o pardal que, coitadito, em matéria de musicalidade, é um completo desastre. Piava, sem ritmo nem originalidade, enquanto saltitava pela floresta, na esperança que a sua atenção apurada detectasse um grãozito de cereal apetitoso.
(Continua)

terça-feira, 7 de novembro de 2006

Duas formas de arte ... tão bonitas.

Incitamento

Remenda a tua rede, pescador! 
Remenda as ilusões!
No maninho areal é que é sonhar! ... 
Ata e refaz a teia
Onde, queira ou não queira o mar,
Hás-de prender o corpo da sereia!

Miguel Torga
Diário IX 
Gráfica de Coimbra (1977)
Almada Negreiros
Gare Marítima Rocha Conde d'Óbidos

segunda-feira, 6 de novembro de 2006

O meu neto

O meu neto fez 4 meses!
Estive com ele ontem, roubei-lhe dois brigadeiros que a mãe tinha feito e que, como sempre, estavam óptimos.
Para quem não sabe, brigadeiros são uns bolinhos de chocolate que os gulosos adoram e que os que o não são detestam, mas vão sempre comendo.
Na mímica de avô e neto, entendi que ele ainda não era guloso nem dos que dizem que o não são. Concluí, por isso, que a mãezinha dele se tinha equivocado e que os brigadeiros se iriam estragar. Antes que todos acabassem no lixo, melhor seria ...
Hoje, o meu neto deu-me outro doce, com palavras de Fernando Pessoa, que a mãe escolheu para me oferecer!
Estragam-me com mimos ...

sábado, 4 de novembro de 2006

Palavras bonitas

VOZ DE COMANDO

Amanhece.
Erguei-vos, corpo e alma, combatei!
Juntos, como num rio
Águas da planície e da montanha,
Aliados, correi
À batalha do mundo, que se ganha
No mundo.

Mundo cruel e duro, mas que eu amo,
Apaixonado pelos seus encantos.
Visito-lhe os recantos,
Sonho um abraço que o abarque todo.
De vez em quando há lodo
Nos baixios,
Mas olho os montes, limpos, preservados
Na sua altura,

E renasce-me a esperança ao vê-los debruados
De rebanhos e neve - a máxima brancura.

Penas do Purgatório
Miguel Torga
Gráfica de Coimbra (1976)